sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Metrópole de Aço (publicado na Folha de S. Paulo)

Metrópole de Aço

Mesmo que eu nunca tenha usufruído da suas posses, mesmo que você não tenha dado direitos iguais há seus filhos, mesmo assim, feliz aniversário.
Mãe, eu não te culpo, faltou eu ter a maldade necessária para vencer, mas faz mó cara que eu não escrevo, acho que com todo seu poder, você entende, pois no final, toda rua de São Paulo quando não é contra mão é sem saída, pelo menos para nós que além do poder público ficamos a mercê do poder paralelo.
Sou o menino que passa carregando a carroça ao lado de um carro importado, mais caro que toda minha vida de salário, e estou indo para a esquina onde os rostos manchados por uma vida dura fazem bifurcação.
Sou o menino que assopra a fumaça do baseado como as fábricas fazem durante todo dia, e também sou seus funcionários lá dentro trancados que na maior parte do tempo são mudos e surdos.
Corro pelo trânsito caótico, de quem num tem tempo para abaixar o vidro e nem perceber que ainda estou vivo, desço a ladeira da indignação para chegar num bairro alagado, mas a culpa é nossa mesma, na hora do voto não fazemos o saneamento básico. Sou a idosa que vive de pegar lata vazia pra sustentar os dois netos.
Como nunca fui aposentado, fico a maior parte do dia imaginando o que é viver como o salário de um deputado, também imagino uma bomba que explode e chega a causar efeito no prato vazio de um pai sentado no lixão olhando o filho que nunca ri.
Você sabe que tem filho seu que dorme ao relento, mas mesmo assim o terminal de ônibus diz a todo momento para não dar esmolas, então vamos distribuir pistolas.
Pobre gente que na terra da garoa tenta ver algum sentido na vida.
Passo com minha caixinha de chiclete na rua de um ladrão de gravata que ora e de policial mal remunerado que chora, quando vê que seu igual é um trabalhador sem expressão e sem futuro.
Vejo o concreto, e perante as famílias sem o básico na avenida de tantos fins de semanas trágicos, eu sou apenas mais um rapaz comum.
Na metrópole de aço, colecionador de pedras é o que todos nós somos.
Sou a mãe que reclama da falta de emprego e quando percebe que o filho sem rumo só tem a rua como recurso eu entro, ligo o televisor e viajo na novela
Sou o evangélico com o bolso vazio e muita fé, que olha os imensos cartazes dos bancos e pensa no diabo.
Continuo a caminhar, vendo as guerreiras se prostituírem bem perto da avenida Oscar do luxo, onde a elite branca brinca de Nova York, perante o carro blindado que fica sempre estacionado na zona sul.
Me enfio por onde começa a rua do desespero, no alto de pinheiros, onde um mendigo morreu pra não incomodar mais o dono da mansão.
Sou o alcoólatra que antes morava na rua sem nome e no barraco sem número, expulso pelo verdadeiro proprietário, dono de algum condomínio fechado, que da penitenciária só tem uma diferença, os moradores pensam estar livres.
Mãe, você oferece tanta coisa que sei que não e pra mim, então porque você mente assim mãe?
A senhora sempre cozinhou, na mesa farta, queijos, vinhos, pães, e porque mãe só alguns podem entrar nessa casa? Não adianta ser a capital da fartura se essa fartura é pra uma minoria.
Mãe você adivinhou meu destino, não tem nenhum inocente aqui, mas me diga porque quando você me escreve, só me manda impostos? Seu coração não atende mais nem as emergências, não tem médicos que me curem a dor da solidão que seus prédios autos me causam.
Mãe, você é costureira e continua a fazer a colcha de retalhos, tentando mesmo que seja em vão juntar todos nós num mesmo lugar para depois chamar de lar.
São Paulo se tornou um lugar para os duros de coração, para os outros quem sair por ultimo feche a escotilha.
Mãe, num vou mentir, você ilude as pessoas de bom coração, dizendo que tem oportunidades na sua casa, mas todos sabemos que o preço é auto, quantos eu já vi tirando 6 anos num cadeião, ou mendigando por não achar emprego? Você mata os meninos e envelhece as meninas além de esconder o que te incomoda, como os cemitérios, as prisões, os doentes mentais Acho que você faz isso comigo também mãe, você me isola, porque não pode me dar o que prometeu.
Quando você me mostrava pras tias, elas me apertavam, me beliscavam, me mordiam, porque machucamos as coisas que admiramos?
Na hora que preciso eu não tenho o mesmo tratamento que meus primos, quando ouve aquele desabamento eles ficaram em hotéis, porque eu tenho que ficar com os outros num pátio de colégio?
Isolado aqui na minha aldeia, talvez eu nem seja um filho legítimo, afinal só sei que meu pai é baiano, talvez eu seja somente um bastardo, mas mesmo assim, feliz aniversário.
Do seu filho, Periferia.

AUTOR: FERREZ

Um comentário:

Planet Not Found disse...

Will, somos a geracao fumaca! Nos sentimos impotentes diante de tanta sujeira (literalmente).
Temos que lutar, pois o nosso sangue e igual, assim como o Tiete e a Baia da Guanabara. E um dia, todo esse mar de lama vai parar no mesmo lugar.
Keep on fighting for a "CLEAN" world!
Otimo post! []s
Granjuxx
http://earth404.blogspot.com/