sexta-feira, agosto 24, 2007

Com a palavra Dr. Drauzio

Já que não dá mais tanto Ibope o caos aéreo, agora chegou a vez de sermos açoitados diariamente com o caos da saúde publica. O esquema é o mesmo... Pega-se o caso mais grave e dá-lhe um tratamento ostensivo e generalizado, como se fosse assunto novo. A tal greve dos profissionais de saúde no Estado de Alagoas é sério sim. Mas vender notícia é mais sério ainda. Afinal isso também é culpa do desdedado. Faltam dizer até que a saúde publica virou problema de alguns anos pra cá. No texto abaixo, não está implícita a questão dos cartéis de planos de saúde nem a exploração da "mão-de-obra", muito menos o fato dos novos médicos se formarem em instituições duvidosas. Bem, dou a palavra ao Dr. Drauzio:


"O exercício da medicina por mais de 30 anos me concede a liberdade de aconselhar os médicos mais jovens, mesmo consciente da péssima reputação de que os conselhos gratuitos gozam. É que o passar dos anos desperta nos mais velhos o desejo compulsivo de recomendar aos que ensaiam os primeiros passos que sejam mais espertos e evitem os erros que a ingenuidade nos fez cometer.

Está na hora de acabar com o ritual do juramento de Hipócrates nas cerimônias de formatura. Para que manter essa tradição? (...) Soa ridículo ouvir jovens recém-formados repetirem-no feito papagaios. Que me desculpem os tradicionalistas, mas faz sentido jurar por Apolo, Asclépios, Higéia e Panacéia não fazer sexo com escravos quando entramos na casa de nossos pacientes? Ou não usar o bisturi, mesmo em casos de cálculos nos rins? (...)

Embora o juramento contenha intenções filosóficas louváveis a respeito da ética no relacionamento com as pessoas que nos procuram em momentos de fragilidade física e psicológica, convenhamos que a visão social do pai da medicina deixava muito a desejar. (...) Sem desmerecer o valor científico de Hipócrates, observador de raro talento, que fugiu das explicações religiosas e sobrenaturais, deixou descrições precisas de enfermidades desconhecidas na época e abriu caminho para a medicina baseada em evidências, repetir o juramento escrito por ele sem fazer menção ao papel do médico na preservação da saúde e na prevenção de doenças na comunidade é fazer vistas grossas à responsabilidade social inerente à profissão.

Por outro lado, aos olhos da sociedade, a mera existência de um juramento solene dá a impressão de que somos sacerdotes e de que devemos dedicação total aos que nos procuram, sem manifestarmos preocupação com aspectos materiais como as condições de trabalho ou a remuneração pelos serviços prestados, para a felicidade de tantos empresários gananciosos.

Por causa desse pretenso sacerdócio, os médicos se submetem ao absurdo medieval dos plantões de 24 horas, seguidos por mais 12 horas de trabalho continuado no dia seguinte, em claro desprezo à própria saúde e colocando em risco a dos doentes atendidos nesses momentos de cansaço extremo. Outros podem passar por isso uma vez ou outra, mas nunca sistematicamente, todas as semanas, contrariando o mais elementar dos direitos trabalhistas: o de dormir.

O que faz da medicina uma profissão respeitável não são as noites em claro nem o conteúdo do que juramos uma vez na vida, muito menos a aparência sacerdotal, mas o compromisso diário com os doentes que nos procuram e com a promoção de medidas para melhorar a saúde das comunidades em que atuamos.

Para cumprir o que a sociedade espera de nós, é preciso lutar por salários dignos, porque hoje é humanamente impossível ser bom médico sem assinar revistas especializadas, ter acesso à internet, freqüentar congressos e estar alfabetizado em inglês, língua oficial das publicações científicas. (...) Medicina não é profissão para aqueles que têm preguiça de estudar.

"Apesar de absolutamente necessário, o domínio da técnica não basta. O exercício da medicina envolve a arte de ouvir as pessoas, de observá-las, de examiná-las, interpretar-lhes as palavras e de discutir com elas as opções mais adequadas. O tempo dos que impunham suas condutas sem dar explicações, em receituários cheios de garranchos, já passou e não voltará.

Talvez a aquisição mais importante da maturidade profissional seja a consciência de que a falta de tempo não serve de desculpa para deixarmos de escutar a história que os doentes contam. De fato, muitos deles se perdem com informações irrelevantes, embaralham queixas, sintomas e, se lhes perguntamos quando surgiu a dor nas costas, respondem que foi no casamento da sobrinha. Nesses casos, o médico competente é capaz de assumir com delicadeza o comando do interrogatório de forma a torná-lo objetivo e exeqüível num tempo razoável.

Nessa área, sim, temos muito a aprender com os velhos mestres. Hipócrates acreditava que a arte da medicina está em observar. Dizia que a fama de um médico depende mais de sua capacidade de fazer prognósticos do que de fazer diagnósticos. Queria ensinar que ao paciente interessa mais saber o que lhe acontecerá nos dias seguintes do que o nome de sua doença. Explicar claramente a natureza da enfermidade e como agir para enfrentá-la alivia a angústia de estar doente e aumenta a probabilidade de adesão ao tratamento.

Muitos procuram nossa profissão imbuídos do desejo altruístico de salvar vidas. Nesse caso, encontrariam mais realização no Corpo de Bombeiros, porque a lista de doenças para as quais não existe cura é interminável. Curar é finalidade secundária da medicina, se tanto; o objetivo fundamental de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano". - Drauzio Varela

2 comentários:

Unknown disse...

"Muitos procuram nossa profissão imbuídos do desejo altruístico de salvar vidas. Nesse caso, encontrariam mais realização no Corpo de Bombeiros, porque a lista de doenças para as quais não existe cura é interminável. Curar é finalidade secundária da medicina, se tanto; o objetivo fundamental de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano"

Gostei bastante desse trecho do texto, que, praticamente, resume o conteúdo do artigo do Dráuzio. No entanto não acredito que simplesmente remover o juramento ou as outras medidas que ele propõe possam resolver o problema da medicina.

De fato, o que é necessário, ao meu ver, é de mais profissionais com autonomia para "aliviar o sofrimento humano".

O interessante do final dessa frase é que ele se põe de forma quase sacerdotal. Afinal foi Sidarta Gautama quem cunhou o termo "dukkha" e a doutrina do budismo como uma forma de eliminar a "dukkha", que nada mais é do que a única doença que existe: o sofrimento humano.

Subverto a lógica de Dráuzio para dizer que é necessário mais sacerdotes e mais religiões para a saúde.

Não sacerdotes e religiões literalmente, mas profissionais capazes de auxiliar as pessoas, seja com palavras, seja com tratamentos, seja simplesmente ouvindo o que o outro tem a dizer.

Talvez fosse necessário que cada um de nós fôssemos mais sacerdotes. Assim todos nós, em conjunto, reduziríamos o sofrimento humano em nome do amor universal.

A grande cura é o amor universal, mas dele pouco se fala. Exceto em músicas ou em outras artes e em iniciações -- ironicamente -- sacras.

No entanto precisamos sim, de mais médicos, mais juízes, mais professores, mais terapeutas em geral, mais amigos, mais amores, mais enfermeiras, mais farmácias, mais comida saudável... mais tudo. E isso tudo refletiria o amor universal que ajudaria, no fim, a aliviar o sofrimento. E Wil, da nossa parte... bem, temos que fazê-la!

Anônimo disse...

Com certeza o que todos querem é o alívio para o sofrimento humano.
Mas não acho que isso seja baseado no amor, o alívio não está no amor, mas na esperança!
Muitos têm esperança, isso alivia o sofrimento.
Porque o amor muitas vezes é unilateral, uma via de sentido único, e pra mim isso não é amor, porque este deveria ser correspondido na mesma intensidade, e quando isso não acontece não há amor.
E na maioria das vezes as pessoas estão em fases diferentes, um ama mais que o outro, e depois inverte-se a história. E quem sofre tem que receber mais amor, tem que se sentir amado, e por que o amor próprio não pode curar o sofrimento? Talvez o amor não tenha toda essa força.
Quando o Drauzio diz que "a fama de um médico depende mais de sua capacidade de fazer prognósticos do que de fazer diagnósticos" é exatamente dar esperança ao paciente, ele não quer saber o que tem, mas se isso tem cura,
quanto tempo ele vai viver e quais serão suas limitações.