quarta-feira, outubro 11, 2006

Registro de vácuo histórico.

Perdoe-me historiador do futuro, receio que este relato nunca seja visto. Mas a responsabilidade de não tentar seria pior.

Minha vida começou no primeiro ano da década de oitenta, ainda século vinte. O cenário é o Brasil, utilizando o zoom-in no mapa daquilo que um dia foi o meu país, você encontrará o estado de São Paulo, ampliando mais você chegará na capital, cuja cidade é representada pelo mesmo nome, afinal a pobreza, a miséria e os contrastes são iguais. Na ultima escala do zoom, é possível enxergar milhares de casas amontoadas, ruas de terra, morros, desocupados, vilas, quebradas, bocadas, favelas, e muita desesperança. É bem ali que eu nasci.

Brinquei na rua, andei descalço, pulei no telhado dos vizinhos e soltei pipas. Vi gente matando, gente morrendo, gente chorando, gente com ódio, gente de bem, gente cansada, vilões e heróis, às vezes ambos num mesmo corpo. Ouvi histórias que não se tratavam do bem contra o mal, mas havia guerra, sangue e ódio. Na periferia, só quem está envolvido na história sabe quem realmente é o mocinho e quem é o bandido, pois ambos roubam, ambos matam, ambos morrem. Só o enredo que muda, o fim é sempre igual.

Ainda criança aprendi o valor do trabalho, a necessidade de sobreviver. Ainda criança pude compreender que a pobreza é diferente da miséria. Que o mundo é dividido em dois, os russos e os americanos. Ainda criança assisti a um país paralisado com a morte do primeiro presidente eleito antes de sua posse. O grito abafado. Era o fim da ditadura. Abafado, porém ressonante. Para baixo dos tapetes todo o lixo criminoso dos militares. Anistia vendida como o retorno dos filhos pródigos escondia a barbárie da absolvição dos agentes do inferno instaurados na terra.

Ainda nessa época, desceram a marreta num muro gigante que havia em Berlim, me parece que foi algo muito importante para o mundo, então o mundo passou a ser um só, dominando apenas pelo mal.

Depois disso, vi minha família se distanciar da pobreza e um segundo presidente ser eleito e em seguida escarrado do cargo. Ainda era criança mas compreendi como funciona a máquina da mídia e das campanhas eleitorais. Já parou pra pensar quanto custam as campanhas?

A distancia da pobreza funcionou como um elástico, à medida que nos distanciávamos ficavámos mais vulneráveis e quando o plano Collor soltou o elástico, lá estava minha família na lama. Pude compartilhar de cada sentimento horrível que meus pais enfrentaram.

Nada disso trabalhou meu senso crítico de forma a me fazer odiar a Xuxa Menegel e o que as suas Paquitas representavam. Eu apenas tinha inveja daquele café da manhã, esnobe, esfregado na minha cara.

Conforme o tempo ia passando, fui absorvendo mais e mais histórias de gente se matando. Pessoas parecidas, com as mesmas dificuldades e realidades, se matando entre si. Mero exercício dos pecados humanos, sem resultado prático nenhum. Mas os homicídios na periferia também possuem uma função pedagógica, eles te preparam para aceitar melhor as perdas e os milhares de obstáculos que teríamos pela vida. E a incerteza do amanhã.

Minha maior obrigação até me compreender no mundo era estudar, criar um diferencial. Não ser melhor que meus vizinhos. Apenas sonhar e mudar esse destino.Torcia o nariz e ia para os cursos gratuitos da paróquia do bairro. Aprendi geopolítica antes de saber que a palavra existia, eram três conduções para ir e três para voltar. Eis um dos preços do ensino profissionalizante de qualidade oferecido pelo Estado.

Até chegar a faculdade, aprendi muito (na prática), sobre os abismos sociais e seus mecanismos para manutenção da elite mesquinha.

Os meus poucos ídolos foram morrendo, as verdades ficando raras, a esperança consumindo o povo. Demagogos brigando pelo controle das riquezas que geramos. Os gringos querendo a Amazônia, os Mulçumanos resistindo. O papa falando asneiras. Os livros perdendo importância, as crianças com fome. Os adultos sem alma. A temperatura global subindo. Os maníacos Yankes decidindo o certo e o errado. O que é de Deus e o que não é.

Olhe atentamente no seu mapa (zoom-in), eu sou apenas mais um. Trabalhando para garantir o lucro dos Yankes de um lado, sustentando a máquina política patética pagando impostos escabrosos do outro. E ainda me obrigam a escolher alguém para representar o papel de governante do caos. Como um filme de terror. E eu tenho que ter essa tal opnião.

Nessa minha geração, não criamos nada, raramente copiamos, e copiamos errado ou copiamos os erros. Nem artes, nem obras, nem revoluções, nem reforma agrária, nem distribuição de riquezas, nada e absolutamente nada. Minha geração congelou com suas grifes e consumo.

Tudo que sabemos fazer bem é destruir, matar, e favorecer-se. Essa é minha história, talvez um pouco diferente da história de muitos que nem aqui chegaram, que foram parados à bala, cadeia ou desgosto. Neste meu mundo, da minha geração, não existem heróis, todos são bandidos, todos são culpados. Todos estão calados. É não é só no meu bairro, na minha cidade, no meu país. É com pesar que me considero cidadão do mundo.

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